Prezados (as);
Achei interessante o texto abaixo, pois reflete bem o que vivemos hoje nas academias no que diz respeito ao Bulling, humilhações e fraudes em seleções para mestrados e doutorados! E no final nós vemos que o que são produzidos "muitas vezes" são trabalhos repetidos ou que não possuem muita inovação dos que se consideram Os Caras! Acho que vale a pena ler...
Boa leitura a todos!
Kleydson Feio
Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica
Combater
o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os "donos
de Foucault" é fundamental para termos uma universidade melhor.
A
vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há
uma máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias,
humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que
medida nós mesmos não estamos perpetuando esse modus operandi para
sobreviver no sistema? Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo
nos perguntando: estamos dividindo nossos colegas entre os "fracos" (ou
os medíocres) e "Os Caras*" ("o cara é bom").
As
fronteiras entre fracos e 'Os Caras*' começam nas bolsas de iniciação
científica da graduação. No novo status de bolsista, o aluno começa a
mudar a sua linguagem. Sem discernimento, brigas de orientadores são
reproduzidas. Há brigas de todos os tipos: pessoais (aquele casal que se
pegava nos anos 1970 e até hoje briga nos corredores), teóricas
(marxistas para cá; weberianos para lá) e disciplinares (antropólogos
que acham sociólogos rasos generalistas, na mesma proporção em que
sociólogos acham antropólogos bichos estranhos que falam de si mesmos).
A
entrada no mestrado, no doutorado e a volta do doutorado sanduíches vão
demarcando novos status, o que se alia a uma fase da vida em que mudar o
mundo já não é tão importante quanto publicar um artigo em revista
qualis A1 (que quase ninguém vai ler).
Na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dizíamos que quando alguém
entrava no mestrado, trocava a mochila por pasta de couro. A linguagem, a
vestimenta e o ethos mudam
gradualmente. E essa mudança pode ser positiva, desde que acompanhada
por maior crítica ao sistema e maior autocrítica - e não o contrário.
A
formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna em
que ele precisa ser um gênio. As consequências dessa postura podem ser
trágicas, desdobrando-se em dois possíveis cenários igualmente
predadores: a destruição do colega e a destruição de si próprio.
O
primeiro cenário engloba vários tipos de pessoas (1) aqueles que
migraram para uma área completamente diferente na pós-graduação; (2) os
que retornaram à academia depois de um longo tempo; (3) os alunos de
origem menos privilegiada; (4) ou que têm a autoestima baixa ou são
tímidos. Há uma grande chance destas pessoas serem trituradas por não
dominarem o ethos local e tachadas de "fracos".
Os
seminários e as exposições orais são marcados pela performance:
coloca-se a mão no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima,
faz-se um silêncio charmoso acompanhado por um impactante "ãaaahhh", que
geralmente termina com um "enfim" (que não era, de fato, um "enfim").
Muitos alunos se sentem oprimidos nesse contexto de pouca objetividade
da sala de aula. Eles acreditam na genialidade daqueles alunos que
dominaram a técnica da exposição de conceitos.
Hoje,
como professora, tenho preocupações mais sérias como estes alunos que
acreditam que os colegas são brilhantes. Muitos deles desenvolvem
depressão, acreditam em sua inferioridade, abandonam o curso e não é
raro a tentativa de suicídio como resultado de um ego anulado e
destruído em um ambiente de pressão, que deveria ser construtivo e não
destrutivo.
Mas
o opressor, "O Cara*", também sofre. Todo aquele que se acha "bom" sabe
que, bem lá no fundo, não é bem assim. Isso pode ser igualmente
destrutivo. É comum que uma pessoa que sustentou seu personagem por
muitos anos, chegue na hora de escrever e bloqueie.
Imagine
a pressão de alguém que acreditou a vida toda que era "um Gênio*" e agora se
encontra frente a frente com seu maior inimigo: a folha em branco do
Word. É "a hora do vâmo vê". O aluno não consegue escrever, entra em
depressão, o que pode resultar no abandono da tese. Esse aluno também é
vítima de um sistema que reproduziu sem saber; é vítima de seu próprio
personagem que lhe impõe uma pressão interna brutal.
No
fim das contas, não é raro que o "fraco" seja o cavalinho que saiu
atrasado e faça seu trabalho com modéstia e sucesso, ao passo que
"O Cara*" não termine o trabalho. Ademais, se lermos o TCC, dissertação ou
tese do "fraco" e do "Cara*", chegaremos à conclusão de que eles são
muito parecidos.
A
gradação entre alunos é muito menor do que se imagina. Gênios são
raros. Enroladores se multiplicam. Soar inteligente é fácil (é apenas
uma técnica e não uma capacidade inata), difícil é ter algo objetivo e
relevante socialmente a dizer.
Ser
simples e objetivo nem sempre é fácil em uma tradição "inspirada" (para
não dizer colonizada) na erudição francesa que, na conjuntura da
França, faz todo o sentido, mas não necessariamente no Brasil, onde
somos um país composto majoritariamente por pessoas despossuídas de
capitais diversos.
É
preciso barrar imediatamente este sistema. A função da universidade não
é anular egos, mas construí-los. Se não dermos um basta a esse modelo a
continuidade desta carreira só piora. Criam-se anti-professores que
humilham alunos em sala de aula, reunião de pesquisa e bancas.
Anti-professores coagem para serem citados e abusam moral (e até
sexualmente) de seus subalternos.
Anti-professores não estimulam o pensamento criativo: por que não Marx e Weber?
Anti-professores acreditam em lattes e têm prazer com a possibilidade
de dar um parecer anônimo, onde a covardia pode rolar às soltas.
O dono do Foucault
Uma
vez, na graduação, aos 19 anos, eu passei dias lendo um texto de
Foucault e me arrisquei a fazer comparações. Um professor, que era o
dono do Foucault, me disse: "não é assim para citar Foucault".
Sua
atitude antipedagógica, anti-autônoma e anti-criativa, me fez deixar
esse autor de lado por muitos anos até o dia em que eu tive que assumir a lecture "Foucault"
em meu atual emprego. Corrigindo um ensaio, eu quase disse a um aluno,
que fazia um uso superficial do conceito de discurso, "não é bem
assim...".
Seria
automático reproduzir os mecanismos que me podaram. É a vingança do
oprimido. A única forma de cortamos isso é por meio da autocrítica constante.
É preciso apontar superficialidade, mas isso deve ser um convite ao
aprofundamento. Esquece-se facilmente que, em uma universidade, o
compromisso primordial do professor é pedagógico com seus alunos, e não
narcisista consigo mesmo.
Quais
os valores que imperam na academia? Precisamos menos de enrolação,
frases de efeitos, jogo de palavras, textos longos e desconexos, frases
imensas, "donos de Foucault". Se quisermos que o conhecimento seja um
caminho à autonomia, precisamos de mais liberdade, criatividade,
objetividade, simplicidade, solidariedade e humildade.
O
dia em que eu entendi que a vida acadêmica é composta por trabalho duro
e não genialidade, eu tirei um peso imenso de mim. Aprendi a me levar
menos a sério. Meus artigos rejeitados e concursos que fiquei entre as
últimas colocações não me doem nem um pouquinho. Quando o valor que
impera é a genialidade, cria-se uma "ilusão autobiográfica" linear e
coerente, em que o fracasso é colocado embaixo do tapete. É preciso
desconstruir o tabu que existe em torno da rejeição.
Como
professora, posso afirmar que o número de alunos que choraram em meu
escritório é maior do que os que se dizem felizes. A vida acadêmica não
precisa ser essa máquina trituradora de pressões múltiplas. Ela pode ser
simples, mas isso só acontece quando abandonamos o mito da genialidade,
cortamos as seitas acadêmicas e construímos alianças colaborativas.
Nós
mesmos criamos a nossa trajetória. Em um mundo em que invejas andam às
soltas em um sistema de aparências, é preciso acreditar na honestidade e
na seriedade que reside em nossas pesquisas.
Transformação
Tudo
depende em quem queremos nos espelhar. A perversidade dos pequenos
poderes é apenas uma parte da história. Minha própria trajetória como
aluna foi marcada por orientadoras e orientadores generosos que me deram
liberdade única e nunca me pediram nada em troca.
Assim
como conheci muitos colegas que se tornaram pessoas amargas (e
eternamente em busca da fama entre meia dúzia), também tive muitos
colegas que hoje possuem uma atitude generosa, engajada e encorajadora
em relação aos seus alunos.
Vaidade
pessoal, casos de fraude em concursos e seleções de mestrado e
doutorado são apenas uma parte da história da academia brasileira. Tem
outra parte que versa sobre criatividade e liberdade que nenhum outro
lugar do mundo tem igual. E essa criatividade, somada à colaboração, que
precisa ser explorada, e não podada.
Hoje,
o Brasil tem um dos cenários mais animadores do mundo. Há uma nova
geração de cotistas ou bolsistas Prouni e Fies, que veem a universidade
com olhos críticos, que desafiam a supremacia das camadas médias brancas
que se perpetuavam nas universidades e desconstroem os paradigmas da
meritocracia.
Soma-se
a isso o frescor político dos corredores das universidades no pós-junho
e o movimento feminista que só cresce. Uma geração questionadora da
autoridade, cansada dos velhos paradigmas. É para esta geração que eu
deixo um apelo: não troquem o sonho de mudar o mundo pela pasta de couro
em cima do muro.
Por Rosana Pinheiro-Machado
Rosana
Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do
departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford
obs: As parte com * (asterisco) são uma adaptação minha!